domingo, 2 de outubro de 2011

Cancioneiro

                                                        



Soneto da Volúpia


Queria do amor não saber nada,
Pra escapar da dor de seu espinho,
Ser cego pr’essa flor atormentada,
Buscar na solidão outro caminho.

Mas eis que nessa senda sou tomado

Por mais do que uma fome toda nova,
Levado na volúpia de um tornado.
E vejo-me, de novo, posto à prova

Por teus olhos, tão cheios de delícia,

E abisma-se em teu céu todo um negrume
A entregar-me a mãos tão sem malícia.

Cansado de lutar, apago o lume,

A noite já me envolve, em sua carícia,
Eu sinto, em teu silêncio, o teu perfume.


Soneto do Amor Inclemente


Eu sinto, em teu silêncio, o teu perfume,
E vejo, em tuas mãos, toda a tristeza
A brilhar em noite sem vagalume.
Queria te mostrar toda a beleza

Deste amor, no auge do seu momento.

Mas te furtas, e nessa tua ausência,
Resta dele apenas reminiscência.
A dor, que testemunha o sentimento,

A impedirei que se torne amargura.

Jamais me entregarei à indolência
De me deixar levar a essa tortura.

Pois enfrento a luta com a inclemência

De quem nunca se negou à bravura,
Seguir o coração até a demência!


Soneto do Amor Primeiro


Seguir o coração até a demência
E amar-te sempre, mais, e a cada instante
Para jamais perder a inocência
De quem se fez, por ti, primeiro e amante.

É o que busco, morena, em tarde quente,

Ao não poder conter tamanha ânsia,
Por não encontrar aquilo que desmente
O véu sombrio e a tão cruel distância.

Habita em teu seio meu pensamento,

Teus olhos são pra mim divina ponte
Entre um viver que era todo um tormento,

Sem nunca mais beber da clara fonte,

E uma manhã tranqüila, sem lamento:
És límpida pra mim, novo horizonte.


Soneto da Estrela da Manhã


És límpida pra mim, novo horizonte,
Que nessa aurora já se fez presente,
E a estrela matinal torna radiante
O que, perdido em mim, era distante.

É quando, rente a ti, fico contente

De estarmos, lado a lado, em pleno cio
Ao nos jogarmos, como em desafio,
Em braços, gritos, pele, corpo e mente.

E foi ao encontrar em flor e dança,

Ao canto de minha voz em tom ligeiro,
Teu sorriso, morena, de criança,

Que o sol dessa manhã se fez parceiro.

Serás sempre retrato, na lembrança
De quem te amou tão triste, e tão primeiro.


Soneto do Compromisso


De quem te amou tão triste, e tão primeiro
Vai sempre junto a dor mais derradeira
De se mostrar desnudo, só e herdeiro
De alma perdida, em vão e na poeira.

De outro modo, como, à lua vadia,

Mesmo com tuas mãos tomadas nas minhas,
Iria sofrer, em tua companhia,
Por noites sem mim, quando não as tinhas?

Porque desejar que tua vida inteira,

Em eterno e natural compromisso,
Fosse comigo, e não de outra maneira?

Mas não me faço do amor, insubmisso:

Essa vida é tão curta, e a paz ligeira,
Em cada instante sou teu, além disso.


Soneto de Sofrer de Amar


Em cada instante sou teu. Além disso,
É tua essa manhã que a mim retorna,
E encontra o céu e o mar a seu serviço.
Minha paixão não tem nada de morna,

Toma de quase nada a sua forma.

Eu já desprezo todos os emblemas,
Não faço de meus versos uma arma.
Se digo para ti: ó, não me temas!

Isso já tem a força de um poema.

Pois trago em minhas mãos, doce morena,
Os calos de quem desistiu da fama,

De homem que não teve alma pequena

E que o calor da noite bem inflama:
Prepara-se pra mim mais uma pena...


Soneto do Condenado


Prepara-se pra mim mais uma pena,
Ficar de meu amor bem mais distante,
Arder de amar não mais do que um instante,
Buscar, nesse teu mar, vela serena.

Enquanto não amaina essa vaidade
Que te afasta de mim, em outra cena,
Eu aguardo, enfim, com toda a saudade
E bendigo o Sol, que te fez morena.

O coração da mulher é mistério,
E porque traz consigo a indiferença
Pergunta-se o vão tolo, e bem a sério,

O mundo está longe do que ele pensa.
Espero, morena, logo a sentença,
Se é que tens, no mundo, algum critério.


Soneto do Retorno ao Porto


Se é que tens, no mundo, algum critério,
Traz a minha nave de volta ao porto,
E o meu corpo, de volta a teu império.
Se tu, que me esperavas semimorto,

Não te importas em dar-me um refrigério,
Vem, bela morena, que por um nada,
Sairei desse estado deletério.
Porque foste, pra mim, como uma fada,

A voar, seminua, pelos prados,
Dando às flores sempre uma nova vida,
Eu sei que fomos, ambos, bem-amados,

E a noite, a mais quente e divertida.
O que importa é cantar os nossos fados,
Saber, enfim, que és terra prometida.


Soneto do Castelo Encantado


Saber, enfim, que és terra prometida,
E que tens a paz de alma enamorada,
Torna tão mais fácil uma partida
Que anseia breve retorno à morada.

Eu faço de teu corpo o meu castelo
E parto, na noite, desassombrado,
Pois tenho, nos teus olhos, o mais belo
Farol de todo mar, o mais dourado.

A tua pele é coroada de rosas
E teus seios têm o cheiro do cravo.
Se minhas mãos te invadem, ardorosas,

É porque não sou mais que teu escravo.
Se tremem minhas pernas amorosas,
Me encanto, e junto a ti, torno-me um bravo.


Soneto do Condão


Me encanto, e junto a ti, torno-me um bravo,
E nunca sou contigo inconstante,
Seria, do contrário, um reles parvo
Que nunca se deu às lidas de amante.

Eu não quero dos teus olhos o cristal

E as luzes de lágrimas derramadas,
Porém recolho, do manso litoral,
Flores mais lindas na manhã timbradas.

Se são tristes, morena, as despedidas,

Que deixam o meu peito encarcerado,
E sofrendo de dor as destemidas

Orações que te fiz, quando a teu lado,

Meu penar lhes dá um toque de Midas:
De ouro puro é teu ser, tão adorado.


Soneto das Madressilvas


De ouro puro é teu ser, tão adorado,
E teus modos avoados encantam
Ao soprar cada nódoa do passado.
Todas as minhas noites se despojam

Ao disputar teu perfume alecrim,
E na tua nudez feliz me arrebato
Ao trazeres uma rosa pra mim:
Com essa flor, eu te amo e combato.

Porque eu te fiz sonhar na negra noite
Em lençóis, madressilvas e jasmim
E só eu, morena, senti o açoite

De teus braços agarrados em mim.
Hoje foges, medrosa, à meia-noite
Mal sabes o que em ti nasceu, enfim!


Soneto da Lua Crescente


Mal sabes o que em ti nasceu, enfim,
Na madrugada de nossos embates,
Não consegues imaginar, por fim,
O que ficou em ti desses combates.

Nas noites em que foste, à luz da lua
Capturada, até o fim, em meus laços,
Como frágil gazela, bela e nua,
Foi porque te tomei toda nos braços.

Seria vão, se só tu me deixasses
Louco de dor, sozinho a naufragar.
É como se minhas velas queimasses

E eu fosse deixado no preamar:
Se tens medo de amar é porque nasces
Pro amor em plena cor de tanto mar!


Soneto do Acalanto


Pro amor em plena cor de tanto mar,
Eu te joguei com ardor, sem calmaria,
E nunca mais soubeste, assim, achar
O sonho mau de te pensar vazia.

Pois quando eu te enlacei, em claro manto,
Não quiseste, senão, ficar contente,
E tanto fomos nós que, de repente,
Nasceu o tom da paz, como num canto.

E foi na luz e sombra de um instante
Que eu te tomei nos braços, sem espanto,
E nunca mais deixei de ser o amante

Que afasta pra bem longe o teu tormento.
E trouxe a ti a voz de um acalanto,
Ser teu, somente teu, daqui em diante.


Soneto do Amor de Graça


Ser teu, somente teu, daqui em diante,
Fazer de nossos corpos uma ilha,
Buscar nesses teus olhos o diamante,
Que em clara lua mansa em paz rebrilha.

Sentir as tuas mãos em plena hora
De meu carinho terno em teus cabelos
É eterno despertar, sem atropelos
Do poeta que te tornou senhora.

Mas se eu tenho, nos versos, a perícia,
Outras vezes, é a sorte castigada,
Não me foi dado lutar com malícia.

Se a graça desse amor não fosse dada,
Faltasse, em pura dor, essa carícia,
Queria do amor não saber nada.


Francisco Settineri.

2 comentários:

O que Cintila em Mim disse...

Maravilhoso! Foi como uma lufada de vento.

Francisco Settineri disse...

E, para mim, teu comentário cintilou!

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